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Thursday 1 June 2017

BABELICUS EM PORTUGUÊS número 3

(O eléctrico 28, Lisboa) 

Babelicus em português está aberto aos escritores de âmbito lusófono de toda a parte do mundo: o site publicará semestralmente os melhores contos e contos breves, entre os recebidos, que cumpram as regras civis de respeito por outras culturas, religiões e ideias políticas. Os autores não perdem os seus direitos autorais.

Podem enviar os seus textos ao correio:
Stefano Valente stef.valente@tiscali.it


Os motivos de Leôdia - Angela Schnoor *


Quando era muito pequena, a menina Leôdia era assediada todas as noites por seu pai.

O velho Leônidas, oficial reformado da marinha, tinha adquirido o vício da bebida desde que, embarcado, recebera a notícia da morte de Nídia, sua amada esposa, na hora do parto prematuro.
Criou a menina com ajuda de sua mãe idosa e fazia tudo pela filha. Mas, às noites, sentia agulhadas de saudades de Nídia e, já entorpecido pelo álcool, ia se aconchegar ao corpinho de Leôdia para se consolar.
Conforme crescia, a menina começou a perceber o pênis rígido do pai encostado em suas tenras nádegas. Embora gostasse do carinho paterno, a censura adolescente começou a lhe causar incômoda revolta quando, uma vez por mês, no dia do aniversário de morte da mãe, o pai tomava um porre colossal e os carinhos passavam ao plano da conjunção sexual.
Pelas manhãs, o pai deixava umas moedas dentro de uma latinha, para que, a caminho da escola, comprasse suas balas preferidas. Ela nunca conseguiu usar este dinheirinho... Não sabia bem por quê!
Assim a menina passou toda a sua mocidade dividida entre a revolta e o amor apiedado por seu velho pai.
Quando já era moça, um dia, não agüentou mais aquela rotina mensal. O pai estava velho, o álcool corroera sua saúde, mas, mesmo assim, ainda depositava sobre ela o sêmen ralo e ictérico.
Leôdia tinha o dom da cozinha. Aprendera em um antigo livro de receitas, porém já nem precisava consultá-lo. Era mestra em fazer a compota preferida do pai. Neste dia, comprou um vidro de bom tamanho e misturou à calda uma boa quantidade de arsênico.
Na condição de filha única e parenta mais próxima do velho, Leôdia reivindicou para si o direito de arranjar o corpo para o velório.
Assim que foi lavado, o corpo, já em rigor mortis, estava na melhor condição para seu intento. Munida de uma faca afiadíssima, cortou o membro que havia sido seu instrumento de vida e de tortura. Colocou-o em formol, no mesmo pote onde havia antes a compota, e guardou-o num antigo baú de sua mãe.
Poucos dias depois do enterro, Leôdia mudou-se para Brasília, onde a esperava uma velha tia e um emprego conseguido por concurso. Sentia-se leve e livre, afinal Brasília poderia ser mesmo a capital da esperança, como dizia o pequeno pratinho ofertado pelo pai, memória da inauguração da nova capital!
Com a morte da tia, o tio começou a visitá-la às noites.
Foi então que a ira contida de Leôdia brotou com força imensurável.
Não, ela não mais seria o palco dos desejos daqueles machos abusados!
Um novo prazer orientou seus planos.
Ao adoecer, pouco antes de morrer, ela abriu o baú e contou.
Foram doze, assim como os meses do ano, os troféus que merecera pelas compotas libertadoras que fazia!

(este conto foi inspirado por O baú de Dennis D.)

* Angela Schnoor diz de si mesma: «Nasci no Rio de Janeiro, Brasil, em março de 1944. Estudei e pratiquei a psicologia por mais de 40 anos. Jamais desejei concorrer ou participar de concursos. Como prêmios, a vida me deu duas filhas e alguns netos que me enchem de orgulho e afeto. Senti-me honrada quando amigos que encontrei através da Internet, traduziram e publicaram contos meus. Quase diariamente conto histórias que publico no blog Microargumentos. Além do psiquismo, as imagens me encantam e sinto necessidade de contar o que percebo em cada uma delas, mas não me sinto à vontade para escrever autobiografias.»
O seu blogue: Microargumentos



A outra e a mesma - José Eduardo Lopes *

Não era fácil para um homem da sua idade, sentir-se de repente só e abandonado no meio de uma casa enorme. Enviuvara, e a dor da perda parecera-lhe atroz, mas agora o que o magoava acima de tudo eram aqueles imensos espaços vazios que a ausência da esposa tornava pesados e dolorosos. Tentou alhear-se da sua viuvez desconsolada, e esquecer mesmo que alguma vez estivera casado. Mudou-se para um quarto secundário da casa, e transformou o quarto de casal num viveiro de plantas. Fechou todos os pertences da mulher e destruiu-lhe as fotografias, e chegou ao pormenor de recortar aquelas em que ambos apareciam lado a lado.
Preocupou-se então em ocupar o espírito com alguma coisa. Reiniciou a sua antiga coleção de peças de porcelana e de jade. Jarras reluzentes, Budas obesos, tigres e dragões chineses, reproduções de esculturas olmecas em jade. Atulhou a casa com objetos. Sem grande rigor nem organização deixava-os onde havia espaço: nos degraus da escadaria interior, nos parapeitos das janelas, sobre os móveis e debaixo da cama. Dezenas e dezenas de artigos, mas por mais que enchesse a casa, sempre que regressava ela continuava a parecer vazia, a palpitar de evocações e ausências, dentro de um silêncio surdo de muitas vozes e palavras que só existiam na sua memória. Sentia-se contrariado por não conseguir sair daquele círculo fechado, às voltas e voltas com recordações sem sentido que o enfureciam.
Teve uma ideia inspirada e após algumas indagações, adquiriu uma imagem de louça de uma mulher sentada, em tamanho natural. Arranjou-lhe uma cabeleira negra, vestiu-a com as roupas da mulher, e sentou a figura de louça numa cadeira junto a uma janela do antigo quarto de casal, entre um feto gigante e uma árvore-da-borracha.
Aquela passou a ser a sua principal referência. Quando se afastava de casa olhava diversas vezes para ela por cima do ombro e era aquela mesma silhueta a primeira coisa que os seus olhos procuravam com ansiedade na hora do regresso. Só de a contemplar, sentia-se mais apaziguado, imune à angústia que antes o atormentava. Nos primeiros tempos conseguiu enganar-se, pensava na imagem como se fosse uma pessoa viva, imaginava-a sentada entre as plantas, a olhar o exterior com uma poética melancolia, à espera do seu regresso. Começou a tratá-la como "a minha mulher" e sempre que saía deixava instrução á empregada para cuidar dela, e para lhe levar as refeições à hora adequada.
Com o correr dos dias, aquela ilusão foi-se desfazendo. Aquela figura começou a parecer-lhe uma coisa estúpida e feia. Ainda pensou em arranjar-lhe um nome bonito ou mudar-lhe a cabeleira e a roupa mas sabia que isso não iria adiantar nada. Exasperava-o que a sua esposa nunca saísse do mesmo lugar, como uma paraplégica. Não se levantava da cadeira para se debruçar sobre o jardim e nem sequer parecia capaz de erguer o braço para o saudar, que era o mínimo dos mínimos que se poderia esperar de uma amantíssima esposa.
Aquele azedume foi aumentando até começar a queimá-lo por dentro. Uma tarde, no regresso a casa, bastou olhar para cima, por entre as copas das árvores, para a silhueta quieta na janela larga, para tudo se precipitar. Entrou em casa como um louco furioso, apanhou na lareira um atiçador de bronze e subiu as escadas aos gritos. Entrou no quarto com os olhos vítreos e a espuma nos lábios, e desferiu golpes na sua esposa até a estilhaçar dos pés à cabeça.
Em poucos segundos, o seu casamento ficou outra vez feito em cacos.

* José Eduardo Lopes nasceu em Moçambique, de onde se refugiou em Portugal com 13 anos. Os primeiros contos que editou na Web eram inspirados na escrita crua e forte de Raymond Carver. Muitas outras influências se juntaram a esta, com realce para Mário-Henrique Leiria, Borges e Cortázar. As suas histórias vão sendo escritas ao ritmo das ideias e memórias que experimenta, e daquilo que o quotidiano ou a fantasia lhe sugere.
O seu blogue: Estrada de Santiago


Límpida como cristal - João Ventura *

Era uma soprano extraordinária. Corriam várias histórias a seu respeito, havia quem assegurasse ter estado presente num recital em que a sua voz tinha feito um copo de cristal vibrar até se ter estilhaçado. Mas a maior parte colocava essas histórias na categoria “mitos urbanos”.
Em 2045, foi naturalmente convidada para o concerto comemorativo dos nove séculos decorridos desde o início da construção da catedral de Chartres. O templo tinha sofrido obras de restauro, e a pedra das paredes e colunas levara um tratamento superficial destinado, segundo os engenheiros de som autores do projecto, a melhorar o balanço entre o som absorvido e reflectido em todo o interior.

Teve início a
Missa pro vocem angelorum e a assistência aguardava, expectante, o início do solo da soprano. Começou piano, e foi ganhando intensidade enquanto o coro ia diminuindo. Quando atingiu o fortissimo as mais de 150 janelas da catedral entraram em ressonância e numa fracção de segundo os vitrais do século XIII caíam estilhaçados no chão de pedra da catedral. Nem um escapou!

* Português, gosta de escrever microcontos, mas por vezes arrisca-se a estórias um pouco maiores... Tem publicado um pouco por aqui e por ali, na Web e em antologias...
O seu terreno preferido é a área do fantástico, mas não se preocupa muito com rótulos, e é um devoto confesso da Fantástica Trindade (Borges, Calvino & Cortázar).
Gosta de livros em papel. Neste número apresenta três contos breves sobre o canto e a voz.


Paz - Ana Carvalhosa *

Aqui e agora decidimos!, tu e eu num espaço, pode ser no mesmo espaço, onde o teu sorriso é o meu abraço, o teu silêncio a minha paz, a minha voz uma gargalhada, porque me olhas de lado e cumplice, a alegria do nosso encontro sobre o mesmo choupo, à beira do mesmo rio, nossa fonte de escutar o passarinho que sobre nós voou e viu,
O que decidimos, aqui e agora!, passear lado a lado neste agora, cheio de trevos e urtigas, malmequeres e tanto trigo, um sol de encantar que preenche o corpo só por estar, energia por um dia, amanhã chove, quem diria... mas, agora diz-me, que mais se podia querer numa roleta gigante de atirar à sorte o que os astros comandam, nada, aceitar
Agora, decidimos aqui!, deixar passar o vento quando nos abraça tormento, suspirar e amar porque nos rega o olhar e, afinal, há sempre um momento diferente que se pode perpetuar, sob o comando do verbo, tomo o leme e rumo à terra que não existe, não lhe podes impôr medidas, fronteiras ou relevo, sequer podes dizer que a terra é segredo, aprende-se a saber a sua localização actual, a qualquer momento, depois de decidirmos todo o outro espaço atravessar, e, por fim decidirmos, é aqui que quero estar!

* Ana carvalhosa - Portugal - Lisboa - 1966; define-se amante da palavra simples, e do sentir de tudo.


Calar - Vítor Leite *

Não sejas a mão que amordaça sonhos que estrangula quereres. Desliza os teus dedos nesta pele. Agarra-me como se eu fosse só um sexo. Crescemos juntos. Não me ouves.
Tão longe de ser poeta, que vontade de ser ridículo e escrever cartas de amor. E os teus dedos que me calam.
Não sou nada. Somente o que cala. Sou o que não digo. Sou silêncio. Dedos a cozer os meus lábios. Sangro, por dentro. Rasgo as minhas entranhas, a pele. Não durmo, faço silêncio, procuro-me. Encontro dedos que me roem, que me picam, que me sangram e me despedaçam. Evaporo-me no silêncio.
Com os olhos em silêncio segredas, Vê bem porque as mãos que te calam são somente as tuas!

* Diz de si mesmo: «Sou português, de Leça da Palmeira, uma pequena localidade bem perto da cidade do Porto, onde há sempre vento que despenteia as ideias. Gosto de escrever pequenas histórias, as mais extensas ficam sempre por terminar! Participei em uma ou duas antologias, em papel, para além disso quase nunca publiquei nada do que escrevo. Participo regularmente e por divertimento em desafios literários.»


Ranhokitus - Samir Karimo *

Antes de o DIVINO bosão ou não unir o corpo humano, os corpos viviam em planetas diferentes: no planeta MANUS-TACTUS viviam as mãos, no Pedibus viviam os Pés, no VISONIS os olhos, no FACCIALIS as caras e por fim no planeta Nason viviam os Ranhokitus e os Penkovsky. É precisamente neste planeta que decorre a ação do nosso conto. Como dizia cada planeta desempenhava uma função, e no planeta STOCKAGEM estavam armazenados os nossos pensamento em recipientes que eram misturados com a areia divina do planeta SANDMAN para criar o ser humano. Todos conheciam bem o seu papel, mas Ranhokitus era contra esta criação… Não queria de modo nenhum juntar-se e fazer parte do corpo, antes queria que o ser humano como precisava do nariz para respirar não respirasse e assim estalou uma guerra civil entre as duas fações, a única maneira de matar este ditador era com uma substância feita à base de coentros triturados picantes o chamado chutney que só existia no Planeta Terra e foi então que...
Por causa deste desequilíbrio cósmico o corpo humano ainda não nascido começou a questionar-se a verdadeira essência da vida...
porque é que sinto que sou o que sou, quero fazer uma coisa, mas o corpo diz-me para fazer outras coisas”

* Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas e em Tradução, desde sempre foi apaixonado pelo mundo fantástico. Atualmente é tradutor e escritor. Dos textos traduzidos salienta-se a Loucura de Deus de Juan Miguel Aguilera, como autor destacam-se os contos Delírios Fantasmales, que saiu na Antologia Fénix de Ficção Científica e Fantasia - Volume II, e Santa Claus Sideral y la Gota de oro Navideña, que saiu na Antologia Fénix de Ficção Científica e Fantasia - Volume III, o poema Sedução que saiu no Poemário 2015 da Pastelaria StudiosComo S.Nodier publicou e traduziu uma antologia dos melhores contos de Charles Nodier (Contos Infernais de Charles Nodier, 2013). Em 2015 publicou a versão em castelhano e em português do seu livro de originais chamado Sobrenatural, do qual é tomado esse conto.


O inquilino - Angela Schnoor

A coisa toda começou quando surgiram entregas para o apartamento 403 do prédio em que eu morava. Ora, como só existiam dois por andar, a coluna 01 e a coluna 02, não poderia haver o número 403.
Na mesma ocasião, ao telefone, teimavam em falar com o senhor Ernesto do 403. Repetiam o número solicitado, exatamente o de minha casa,  e diziam corretamente o endereço e o bairro, com um único senão: o algarismo 3 que compunha o numero 400, inexistente até aquela data, em que uma portinha minúscula surgiu como do nada ou de lugar algum.
Estava eu no quarto dos fundos, separando objetos sem serventia deixados  pela  tia Bertholda, antes do retorno a São Petersburgo, sua cidade natal, quando ouvi um barulho pequenino e leve como o de um pássaro pousando na janela. Como não havia janela no aposento, poderia ser um rato, mas ratos não cantarolam notas musicais e nem projetam réstias de luz sobre o assoalho. Assim, seguindo o som e a luz, me deparei com a portinha minúscula na base da parede do quarto de despejos. Foi então que conheci o senhor Ernesto.
Meu inquilino, posso assim dizer sem sombra de dúvida, cantava lindas canções russas e, provavelmente, morava no numero 403! Não preciso explicar que o Sr. Ernesto fora exímio na arte de puxar, da minha morada, uma extensão de linha telefônica e outra de energia elétrica. Mas consumia tão pouco o pequenino, bem menos que um passarinho!


Jandira – Stefano Valente *

Quando conheci Jandira, ela (ou ele?) encontrava-se na fase que os T’teluph chamam “ovuladriz”. Nós humanos, uns mais outros menos, já conseguimos acostumar-nos às mudanças da fisiologia dos T’teluph. É verdade, pois que eles introduziram-se nos nossos sistemas sociais há quase trinta anos. De qualquer maneira a beleza e o fascínio que emana do corpo dum T’teluph quando está no seu estádio de portador de óvulos deixa-te sempre totalmente vulnerável.
E isto foi o que me aconteceu. Jandira (o próprio nome é inventado) nem me via. Alta, loira, estupenda no seu desassossego – à procura dum seu semelhante “recebedor”. Resolvi segui-la pelas ruas, pelas vielas. Com certeza, ela tinha de se encontrar com alguém, “entregar-lhe” o óvulo, e depois desaparecer na escuridão dum qualquer bairro, no silêncio e na sombra de qualquer esquálido quarto de aluguer em que se teria transformado em mais uma aparência, passando de mulher formosa a ser andrógino, emagrecido, quase um rapaz.
Mas, apesar de tudo, apesar dos cinco sexos dos T’teluph, eu amava-a.
Apanhei o eléctrico 28 – estava mesmo atrás de Jandira, mas escondia-me no meio dos outros passageiros. De repente, na paragem perto do Castelo, ela desceu. Consegui descer também eu, em toda pressa, dando um empurrão a um outro T’teluph – que nem teve reacção (como é hábito deles).
E, depois, aconteceu o incrível. Jandira voltou-se, os nossos olhares encontraram-se. Reconheceu-me – sem dúvida. E então começou a correr, a fugir. Os T’teluph – e particularmente no estádio de “ovuladrizes” – são mais rápidos que os leopardos (é para “defenderem” a sua prole). É inútil dizer que eu tinha perdido Jandira para sempre...
Contudo – isto é, não obstante este amor impossível, impedido por duas culturas e, sobretudo, duas biologias diferentes –, eu não consigo detestar essa raça tão diversa. Nunca temi os T’teluph. Muita gente que conheço ainda os olha com susto, com inquietação. Ainda os considera intrusos, invasores. Porém, porquê? O universo talvez nos ensine isto: que é imenso. E que também podem ser infinitas as formas com que abraçarmos e nos abrirmos a novos amores.

* Escreve há sempre, em italiano e em português, mas não ama falar de si. Por isso tem um site, que actualiza devagar: stefanovalente.com.


Museu dos afetos perdidos - Angela Schnoor

Não sei como cheguei àquela porta, mas o nome do lugar era curioso e atrativo e não resisti.
Sensação estranha, familiar, ao adentrar aquele espaço. Até odores pareciam remeter-me a outros tempos, mas o que sentia mais forte era perda, uma funda sensação de algo que faltava.
O que vi primeiro foram abraços nunca recebidos de mãe e pai e um vazio muito grande ocupou meu peito triste.
Num canto mal iluminado, fraca luz vermelha clareava algo confuso e barulhento, soturno e ameaçador: identifiquei raivas diversas.
Estranho elas se unirem mas, afinal, tinham o mesmo propósito e não conseguiam se livrar de si mesmas. Anotei que precisaria conseguir, fosse aberta naquele canto, uma janela a trazer claridade, para que pudessem se libertar.
Alguns nichos pouco nítidos me deixavam entrever pessoas amorosas a quem neguei afeto ou nem percebi. Assim permaneceram mal paradas, inseguras, mãos tímidas no ar emitindo palavras pouco audíveis, murmuradas com medo e timidez.
Em outros, ao contrário, havia impulso meu para entrar e este era barrado de modo ora agressivo, ora indiferente e mesmo zombeteiro.
Mas, talvez o pior tenham sido as dores. Pareciam sangrar-me em seu tempo perdido. Afetos mal aproveitados, mal vestidos, poluídos e desfeitos em trapos. Carinhos mal feitos, pouco experimentados e escapados no tempo, abortados pela morte ou pela indiferença.
Quanta coisa mal vivida, mal percebida, pouco valorizada. Relações longas mas, pouco conscientes de sua importância, tornaram-se pálidas e sem viço.
Mas nem tudo era assim. Algumas peças risonhas e coloridas me trouxeram alegria e prazer embora gastas, conjugadas no passado e assim catalogadas.
O museu me fazia consciente de mim e de tanta vida partilhada.
Tanto foi que me vi surpreendido ao procurar pela grande paixão vivida um dia. Uma das perdas mais importantes e sofridas, onde e como estaria representada?Ao descobrir que ali não estava, deixei o museu quase correndo, certo de que talvez fosse a chance de encontrá-la ainda viva, à espera!...

A Voz - João Ventura

No princípio era a Voz. A Voz primordial era simples, pouco mais que uma vibração, mas nela pulsava o universo. E durante milhões de anos foi o único som. Quando a Voz encontrou as pedras e as plantas, umas e outras reagiram à Voz e assim nasceram as vozes.

Depois apareceram os animais, com vozes que se moviam, e as vozes estáticas das pedras e das plantas foram lentamente desaparecendo.

Surgiu o homem e a sua voz foi evoluindo desde os gritos dos caçadores/recolectores até às canções de Schubert e às óperas de Verdi.

A Voz primitiva, que há milhões de anos tinha adormecido, acordou. E não gostou das vozes que ouvia. E apagou-as. E durante muito tempo só se ouvia a pulsação da Voz.

E quando a Voz adormeceu de novo, ficou só o silêncio. Ensurdecedor.





Os três irmãos – Eduardo Oliveira Freire *


Um era impulsivo, o outro mediador e o último controlador.

O que equilibrava, cansado de arbitrar, foi embora para encontrar sua individualidade. Anos depois, com remorso, voltou. Percebeu que a casa não fora destruída e os irmãos que sempre estavam em conflito, viviam em harmonia.

* Eduardo Oliveira Freire, brasileiro, formado em Ciências Sociais e aspirante a escritor. Gere os blogs http://dudv-descarrego.blogspot.com.br e http://cronicas-ideias.blogspot.com.br


Silêncio - Vítor Leite

- Estás muito calado homem, que se passa?- Nada.

- São os peixes, diz lá o que tens!
- Não tenho nada, se calhar é isso, não tenho nada.
- Como não tens nada? Tens uma família e uma casa…
- Não é nada disso Maria, ando preocupado com a vida, a nossa e a das raparigas… e o rapaz que mais dia menos dia vai para a guerra…
- Ora, não penses nisso que te matas…
- E a chuva que não vem, está o bicho a comer tudo…
- Oh homem e resolves alguma coisa a cismar nisso? Deixa lá que tudo se resolve. - Ele não respondeu, continuou no seu silêncio, a meditar na sua vida. A avó Maria bem tentava puxar conversa, uma e outra vez, mas nada. Ele respondia com sim e não, e ela bem percebia que ele queria ouvir o seu silêncio. Mas ela não gostava de o ver assim calado. A ver para dentro, a remoer uma vida, a dele e a dos outros.
Nada se mexia nesta cozinha, a Maria ponteava roupa e procurava meter conversa para mexer com o Rafael. Ele não se mexia, segurava um dedo com a outra mão, ou então, embrulhava a ponta da camisola, em volta dos dedos. Tudo ficava tão quieto, sempre tão quieto… Triste? Sim. Mas mais preocupado, isso sim, o seu semblante não enganava ninguém. Muito menos a Maria.
- Então o poço ainda tem água?
- Sim… vai deitando… dá para regar… ainda hoje deu para o feijão e para o tomate… deitou toda a manha e não parou.
- Olha que o vizinho daquela banda já se queixa que não tem água. - E a conversa parou, só se via a luz, fraca, e, a mão da Maria a cozer a roupa. Tudo parado, tudo em silêncio. No ar viam--se grãos de pó a andar de um lado para o outro, tudo o mais estava parado, parecia uma pintura. Silêncio e tudo parado.
- Bem vamos lá para a cama que já se faz tarde, e também esta roupa já está… o trabalho que falta não se estraga e amanhã acabo. Anda daí homem, vamos e não penses na morte da bezerra, anda homem. - Mas ele estava agarrado ao seu silêncio, muito pensativo, sempre, deitou-se e levantou-se, e, deitou-se e levantou-se mais uma e outra semana, e o silêncio não passava. 
Com a primavera os miúdos começaram a ir mais vezes e mais tempo para casa dos avós, e veio a Páscoa, e os pássaros também vieram ver o que se passava. O Rafael começou a ver o mundo com outros olhos, e, já começava a brincar com tudo e todos.
Até se preocupava com o que se passava com os vizinhos, e as roupas, e, as raparigas e o rapaz.
Cada vez está mais perto a sua partida para a guerra. E o Rafael segurava num dedo com a outra mão, e depois outro dedo, e embrulhava-o na ponta da camisola e saía em silêncio. Ia, não sabíamos para onde, mas a avó Maria via a passarada a levantar voo e sabia sempre por onde andava o seu Rafael.
Dos lados do Rodão ia até ao Monte Claro, depois para os lados da Ponte, ou ainda mais longe lá para o Monte do Ouro. Ia de mão no bolso e a sachola ao ombro, chapéu e uma palha na boca. Ninguém sabe se assobiava, se cantava ou se falava sozinho… Por vezes ouvia-se um assobio e quando a Maria lhe perguntava se tinha visto alguém por aquelas bandas, porque ouvira um assobio, ele dava sempre a mesma resposta,
- Sim Maria foi o vento, ouviste o vento a assobiar, e como ele assobiava hoje.
Tinha andado a regar junto do caminho que vai lá para a praia do aterro, e enquanto desviava a terra para conduzir a água ouviu um boa tarde, virou-se e viu o João do Passal,
- Olá, então como vai isso? E o teu pai?
- Sempre cada vez pior, já não sabemos o que lhe fazer…
- Isso é que foi… tão novo, tão cheio de vida e de repente… já está… arrumado à espera da sua hora…
- É Rafael, o carteiro trás notícias que por vezes arrumam a nossa vida!
- E foi só isso?
- E olha que não foi pouco, só quem passa por isso é que sabe. E tu estás bem?
- Sim, se posso dizer isso…
- E o teu já abalou para a guerra?
- Não me fales nisso homem de Deus, não me digas nada… está com as malas prontas, vai à tua vida que eu preciso de regar aqui estas novidades, e mastigar as minhas ideias...
- Até mais ver… - e virou costas, viraram costas, cada um seguiu com a sua vida, com os seus pensamentos.
Voltou tarde, mão no bolso sachola ao ombro.
- Estive com o João do Passal, diz que o pai está cada vez mais morto, como a vida.
- Ora homem a vida não tem nada de morto!
- Pois não, mas o Ti Neca depois da morte do filho lá na guerra, nunca mais foi o mesmo, nunca mais se levantou… e lá está à espera da sua hora!
- É homem, mas não podemos pensar nisso. Temos que viver!
- E o teu filho há-de ir e voltar, por Deus, ouviste-me? Há-de ir e voltar, como as ondas do mar. E inteiro. Não te mostres assim desanimado que chamas o azar… anima-te e vive, alegra-te e goza a vida, enquanto podes e como podes...(silêncio) Não podemos andar assim fechados como tu tens andado, não podemos pensar assim, temos que chamar a felicidade, sabes homem, tenho saudades de ouvir o assobio do teu vento…
- O quê?
- Deixa lá homem, são coisas minhas…


Pelo menos, uma vez na vida... – Eduardo Oliveira Freire


É uma bela jovem e dirige sozinha pela estrada em busca de liberdade. Seu carro quebra e um desconhecido a ajuda. Dá-lhe carona e uma forte atração surge entre eles.
A mulher tem receio que seja um tarado, já o homem pensa que a jovem pode ser uma emboscada. Talvez seu comparsa está na próxima curva. Mas, ela se reconhece no olhar dele e vice e versa. Os dois querem ser livres pelo menos uma vez na vida.
Nada acontece e param num motel de estrada, só há um quarto vago. Decidem ficar juntos e segundos depois, sozinhos, entregam-se ao desejo até o anoitecer. Sentem-se com asas e voam em todos os recantos inimagináveis.
No entanto, nem se dão conta que seus antigos parceiros obcecados e obsessivos colocaram rastreadores em seus respectivos celulares e já sabem que estão juntos no quarto. Também, reconhecem-se na traição e na vingança.

Estranhamente, quem os visse, teriam a impressão de que estavam com olhos felinos.


O solista da Cantata - João Ventura

O coro abrilhantava todas as cerimónias litúrgicas que tinham lugar na velha igreja do mosteiro. O irmão Bonifácio era um dos solistas, juntamente com os irmãos Torcato e Salvador, e o irmão Francisco, que dirigia o coro, andava há três semanas a ensaiar a famosa cantata atribuída a um dos fundadores do mosteiro, para ser incluída na missa do dia do santo padroeiro. Nenhum dos solistas se atrevia a perguntar ao irmão Francisco – conhecido pelo seu feitio difícil – quem iria cantar os solos.

O irmão Bonifácio queria desesperadamente ser o solista naquele dia, entre outras razões porque o Bispo viria presidir à cerimónia. E arquitectou um plano para que isso acontecesse. Não era um plano totalmente benévolo, mas nada que uma confissão bem feita não pudesse lavar.

Como trabalhava na farmácia do mosteiro, os seus conhecimentos sobre ervas medicinais e os seus efeitos eram superiores à média. Fez um preparado com várias ervas que misturou disfarçadamente na comida do irmão Salvador. No dia seguinte o pobre monge tinha a pele coberta de borbulhagem e o abade, receoso de que fosse algo contagioso, fez transferir Salvador para uma enfermaria reservada aos casos clínicos mais graves.

Quanto ao irmão Torcato, uma infusão misturada na sua malga do chá provocou-lhe um tremendo ataque de disenteria que levava o monge a correr periodicamente em direcção às latrinas.

Com o caminho livre, Bonifácio esmerou-se na preparação da cantata, queria ter a certeza que a cantaria o melhor possível.

E no entanto, “O homem põe e Deus dispõe”. Na madrugada do dia marcado uma violenta tempestade assolou a região. A carruagem onde viajava o Bispo ficou atolada na lama a pouco mais de uma légua do mosteiro, e várias árvores arrancadas pelo vento bloquearam diversas estradas, tornando as deslocações na região extremamente difíceis. Mesmo na cidade, a chuva forte e o vento impediram a grande maioria dos fiéis de se deslocarem à igreja. E o irmão Bonifácio cantou os solos para uma assistência constituída pelo sacristão, duas velhotas que moravam numa casa a poucos metros da igreja e dois ou três mendigos que tinham procurado o abrigo da igreja para fugir à intempérie.





Terror – Eduardo Oliveira Freire


No inverno as ruas escurecem rapidamente e ficam mais vazias. Helena anda apressada, quer entrar logo na sua casa.
Ao chegar, tranca-se e, sentindo-se segura, dá uma arrumação rápida nas coisas, toma banho e vai assistir um pouco de tevê.
Toda casa está escura, só a luz da televisão ligada. Helena deseja se distrair um pouco, sente medo de tudo. 
Quando começa a madrugada, inicia um filme de zumbi. Helena assiste para matar saudade dos tempos que assistia estas histórias com os primos. Era muita gritaria e zoação.
No filme, a heroína está escondida nos arbustos, observa um morto vivo que lhe parece familiar. Neste momento, Helena sente uma presença na janela. É seu primo que não via há muito tempo e viciado em crack.
Ele está com os olhos vidrados no filme e, por segundos, Helena percebe que seu primo e o zumbi trocam olhares que transbordam uma voracidade imensurável.
Helena desliga a tevê rapidamente, corre para o sofá e se esconde nas cobertas. Reza para amanhecer logo ou cair no sono.

Percebe que o primo se foi, está completamente sozinha no breu da madrugada. Pensa na infância e de como seu bairro foi tranquilo um dia.

De repente, ouve o galo cantar e a movimentação na rua. Helena relaxa e cochila um pouco, ainda tem três horas de descanso até o despertador tocar.

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